O valor do amanhã e o peso do passado
Por Antônio M. Buainain*
O Fantástico iniciou uma série intitulada O Valor do Amanhã, que já no primeiro capítulo explicitou a troca fundamental que indivíduos, famílias e nações enfrentam entre o nível de desfrute do presente e o investimento - que sempre exige alguma renúncia - na construção de um futuro melhor. "É melhor viver agora e pagar depois ou pagar agora e viver depois?" Embora os economistas tenham modelos matemáticos para respondê-la em sua dimensão financeira, não é uma equação de solução fácil, quando se consideram toda a complexidade e a fragilidade da vida dos indivíduos. Por isso é matéria para os filósofos, que a enfrentam sem as usuais simplificações que nós, economistas, usamos para analisar a realidade.
Indivíduos têm livre arbítrio para decidir como usar, no presente, o tempo e o recurso de que dispõem. Podem ser cigarras, formigas ou uma mistura de ambas; alguns optarão por viver intensamente o presente, assumindo os riscos de sobreviverem sem ter plantado nada para mantê-los; outros buscarão viver o presente com um olhar para o futuro e investirão na realização dos sonhos e na perseguição das fantasias.
Com as nações é diferente. Como não são efêmeras, sempre haverá, para elas, um futuro, que pode ser melhor ou pior, segundo as decisões e ações do presente. Em um país acostumado a exaltar o valor da improvisação, é interessante que um programa de grande audiência reflita sobre o valor do amanhã.
É provável que os próximos episódios esclareçam que as decisões individuais são condicionadas por valores sociais dominantes, os quais são construídos lentamente a partir de evidências de quanto rende amanhã o esforço de hoje, de exemplos colhidos no dia-a-dia e dos incentivos que cada um tem para consumir ou investir, para valorizar o trabalho ou o ócio, para crescer pelo mérito ou pelos vários jeitinhos. Em outros artigos, neste mesmo espaço, já sustentei o ponto de vista de que estamos fazendo pouco, hoje, para construir um futuro que seja substancialmente melhor. Ou pelo menos que não estamos seguindo o bom exemplo de países que superaram o atraso nas décadas recentes.
A equação do presente e do futuro se torna ainda mais complexa quando se agrega o passado, que se manifesta como herança que uma sociedade não tem como - e nem pode - renegar. A principal delas, no Brasil, é o analfabetismo e o baixíssimo nível de instrução de quase 2/3 da população, hoje os maiores fatores de exclusão social e da má distribuição de renda, que nenhuma Bolsa-Família consegue compensar. E o pior é que a educação ainda é pouco valorizada como fator essencial do desenvolvimento, tanto pelas famílias - salvo parte da classe média que tem condições e busca educação de qualidade para os filhos - como pelos governos que decidem sobre as prioridades e os gastos públicos.
As dívidas interna e externa também são heranças que por mais de uma década travaram o desenvolvimento do País, e que, embora tenham sido equacionadas a partir do Plano Real, ainda têm peso considerável. Embora o governo continue gastando mal, os juros não são altos porque se gasta demasiado com o presente ou com o futuro, mas porque se gastou muito - e mal - no passado.
Muitas outras heranças ganharam evidência com a democratização, como por exemplo a exclusão dos afrodescendentes e das comunidades quilombolas. São problemas graves que precisam ser enfrentados no contexto de um projeto de desenvolvimento. A resposta tem sido a criação e o reconhecimento de direitos especiais para reparar, no presente, danos infligidos no passado aos escravos, índios ou camponeses. Os quilombolas reivindicam hoje área equivalente ao Estado de São Paulo; os afrodescendentes já têm suas cotas em universidades, independentemente do mérito; algumas reservas indígenas são maiores que vários países europeus; e a população de sem-terra que "tem direito" a um lote não pára de crescer. Neste ritmo, o território nacional corre o risco de ser dividido entre reservas indígenas, assentamentos de reforma agrária e comunidades quilombolas.
Reconhecer ou criar direitos é fácil: reúna-se uma Constituinte ou se assina um decreto presidencial. O difícil é transformá-los em realidade e mais ainda é fazê-lo sem comprometer o futuro. Distribuir terras ou títulos de doutor pode ser uma boa política para os governantes, mas não necessariamente para o futuro da Nação.
*Antônio Márcio Buainain professor do Instituto de Economia da Unicamp.
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